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28/9/2021
Comportamento

Como a arte pode nos ajudar a lidar com a saúde mental

Ponte entre o mundo interior e o exterior, a arte nos coloca em contato com sentimentos íntimos e desconhecidos, além de reduzir o estigma diante deles.

Amanda Mont’Alvão Veloso
O papel da arte na saúde mental

“A arte me salvou.” 

São muitos, e nos mais diferentes contextos, os testemunhos da capacidade restauradora que a arte tem para diversas pessoas. 



Também pudera: essa dimensão protetora que ela tem para alguns costuma ser mais explícita em períodos desafiadores, seja criando ou desfrutando da arte. 


Com a pandemia, não foram raras as situações em que ela foi convocada como uma poderosa ferramenta para ajudar a atravessar um dos momentos mais incertos da História mundial, como demonstram as artes postadas no criativo Museu do Isolamento


Escutar tanta gente dizendo que a arte salva é, então, escutar sobre uma função de socorro, de amparo, de algo que faz ponte. E essa travessia pode ser o encontro com a subjetividade de cada um, a partir do contato com sentimentos tão íntimos quanto desconhecidos. 


É o que acontece quando, diante de um filme ou um livro, seja na condição de autores ou de público, nos identificamos com aspectos inesperados de um personagem que parece ser profundamente diferente de nós mesmos. Esse reconhecimento nos intriga e desperta questionamentos importantes. 


“Quando nos expressamos verbalmente, escolhemos conscientemente nossas palavras, o que serve como filtro para muito do que sentimos. Na expressão artística esses filtros diminuem, e podemos colocar nessa outra linguagem – poética, visual, musical,  ficcional, plástica – conteúdos que não surgiriam no discurso comum”, contextualiza o psiquiatra e doutor em Ciências pela Universidade de São Paulo (USP) Daniel Martins de Barros. 


Esse tipo de acesso que a arte tem à nossa intimidade vem de sua capacidade de nos colocar para fora de nós mesmos, como explica a psicanalista e psicóloga Tania Rivera, mestre e doutora em Psicologia pela Universidade Católica de Louvain, na Bélgica. 


“A arte é o campo cultural no qual podemos encontrar o íntimo, fora, entre nós, tornado comum. Nesse sentido, ela pode eventualmente expandir ideias de mundo e de gente, trazendo pensamentos e sensações que podem eventualmente nos fazer reconhecer fora de nós algo que é nosso. Penso que ela pode, principalmente, apresentar o mundo de forma crítica, problematizando situações e pontos de vista e nos convidando a inventar outros olhares.”


Como um veículo que permite pensar sobre nossa relação com o mundo e com o outro, a arte se presta ao papel de reflexão para qualquer tipo de conteúdo, desde emoções profundas até relações pessoais, planos e projetos de vida, exemplifica Barros, que é coordenador no Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas de São Paulo. 


É nessa esteira que a arte também pode inspirar uma busca por cuidados de saúde mental, especialmente quando há o interesse em entender um pouco mais sobre as fontes de conflito com a família, os amigos ou o pessoal do trabalho. 


“Não creio que a arte tenha um valor diretamente terapêutico, mas, sim, que ela culturalmente é um campo (bastante mal delimitado, diga-se de passagem) no qual se põe em jogo o singular (de cada um) e o comum (de todos). Por essa via, ela nos convida a reelaborar nossa relação com os outros de modo dinâmico e afetivo, contribuindo no campo da saúde mental”, destaca Rivera, que é professora titular do Departamento de Arte e do Programa de Pós-Graduação em Estudos Contemporâneos das Artes da UFF (Universidade Federal Fluminense). 


Para que a arte constitua uma ferramenta de propósito terapêutico, ela é abordada de outra forma, por profissionais especializados, explica Barros. 


“A arte pode ser uma forma de terapia quando um profissional arteterapeuta se utiliza dessa possibilidade de expressão para, junto com o paciente, abordar os conteúdos expressos. Isso tem aplicações de pacientes com depressão até em quadros demenciais.”


Nesse sentido, o tratamento de quadros mais agudos de saúde mental foi notabilizado no Brasil por nomes como Nise da Silveira e Durval Marcondes, que inauguraram um olhar de protagonismo da arte como técnica.



A arte como aliada na saúde mental 


A arte também demonstrou ter papel importante na prevenção de doenças, promoção da saúde e gerenciamento e tratamento de doenças ao longo da vida, como aponta este relatório da Organização Mundial da Saúde (OMS), divulgado em 2019. 


O objetivo era avaliar os resultados de mais de 3.000 estudos tendo como guia a pergunta: “Quais são as evidências sobre o papel das artes para melhorar a saúde e o bem-estar?”. 


O relatório dividiu as artes em cinco categorias amplas, sendo: 1. artes cênicas (música, dança, teatro, canto e cinema); 2. artes visuais, design e artesanato (artesanato, design, pintura, fotografia, escultura e têxteis); 3. literatura (escrita, leitura e participação em festivais literários); 4. cultura (ida a museus, galerias, exposições de arte, concertos, teatro, eventos comunitários, festivais e feiras culturais); e 5. artes online, digitais e eletrônicas (animações, produção de filmes e computação gráfica). 


Dentre as evidências encontradas, a pesquisa enfatiza um benefício imprescindível da arte: a redução do estigma em torno dos cuidados com a saúde mental. Se hoje a sociedade ainda tem o desafio de combater a ideia de que esse tema “é coisa de gente doida”, as artes dão uma ajuda preciosa. 


Estudos mostram que programas de artes nas escolas têm sido usados ​​para melhorar a alfabetização em saúde mental, a empatia e a inclusão, enquanto festivais de arte aumentam não só as atitudes positivas em relação à saúde mental, como também a apreciação das habilidades e da criatividade das pessoas com doença mental e a eficácia coletiva percebida nas comunidades para melhorar os cuidados. 


Em unidades destinadas à internação psiquiátrica, foi constatado que compor canções reduz os níveis de estigma. A arte é também utilizada para derrubar a crença de que os indivíduos com doença mental sejam incapazes de trabalhar, facilitando o retorno ao emprego e quebrando barreiras entre os colegas. 


Além disso, o estudo identifica que histórias encenadas na televisão têm sido usadas para ajudar a reduzir a vergonha em torno da psicose pós-parto: os sentimentos de relacionamento com os protagonistas destas histórias foram considerados um fator-chave para o seu sucesso como intervenção.


Se a arte é capaz de dar acesso a algumas de nossas questões mais fundamentais, a encarregada de trabalhar esses conteúdos é a terapia, pondera Barros. 


“Assim como uma conversa profunda com um amigo traz insights, mas não é uma psicoterapia, produzir arte apenas nos permite refletir sobre várias coisas; ela também não é exatamente uma terapia.”



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