Sangue não se compra na farmácia. É assim que a médica hemoterapeuta Cyntia Arrais, da Fundação Pró-Sangue, sublinha a importância do ato de doar sangue. São inúmeras situações em que a transfusão é recomendada, de doenças hematológicas a traumas e cirurgias. Todos os dias tem alguém precisando de doação; em 2019 foram 2,95 milhões de transfusões realizadas. E, durante a pandemia, com pacientes graves de covid-19 também necessitando de sangue, a doação é ainda mais essencial.
Diferentes estudos relatam o efeito positivo da doação de sangue, não apenas para quem recebe, mas também para quem doa. Além do check-up realizado na triagem, a literatura científica demonstra evidências de que doar sangue pelo menos uma vez por ano pode melhorar as condições cardiovasculares, assim como acarreta benefícios para a saúde mental do voluntário, que vão desde aumento da felicidade até a redução do risco de depressão e sentimento de solidão.
Plasma
Parte líquida do sangue, de coloração amarelo, responsável por todas as substâncias nutritivas.
Hemácias
Conhecidas como glóbulos vermelhos, responsáveis por transportar o oxigênio a todas as células do organismo e levar o dióxido de carbono até os pulmões para ser eliminado.
Leucócitos
Conhecidos como glóbulos brancos, responsáveis pela defesa do organismo
Plaquetas
Pequenas células que tomam parte no processo de coagulação sanguínea, agindo nos sangramentos (hemorragias)
Para quem recebe a doação, a importância está na singularidade desse tecido vivo e em sua função. O sangue é como um trem em uma grande jornada, que parte da medula óssea, carregado por quatro principais componentes: plaquetas, leucócitos, hemácias e plasma, cada um com sua responsabilidade. Por meio do sistema circulatório, transporta nutrientes e oxigênio para o restante do corpo. Quando há algo que atrapalhe esse caminho, é preciso reverter a situação. A transfusão é um dos procedimentos que auxiliam nesse processo.
São diferentes situações em que é necessária a intervenção com uma bolsa de sangue. Por exemplo: quando o sangue fica reduzido a um nível que o organismo não consegue seguir sua reposição natural; quando algum componente do sangue não está funcionando de forma adequada; quando há uma deficiência na medula óssea; entre outras particularidades de diferentes condições de saúde.
Doação de sangue em tempos de pandemia
No Brasil, a doação de sangue é exclusivamente voluntária, e o número de pessoas que buscam os bancos de sangue vem caindo anualmente. As questões apontadas para esse cenário são deslocamento e questão econômica (sair do trabalho para doar não é encorajado pelas empresas, por exemplo). Dias frios, feriados e férias escolares também impactam na doação.
Desde o início da pandemia da covid-19, a situação se agravou com a indicação para o distanciamento social. De acordo com a Fundação Pró-Sangue, centro de referência da Organização Pan-Americana de Saúde que abastece cerca de 100 mil instituições públicas do Estado de São Paulo, a doação caiu 10% neste ano em comparação a 2019, último ano sem pandemia.
“A queda só não foi mais acentuada porque nos adaptamos à realidade de distanciamento social e desenvolvemos o agendamento digital, que dá mais segurança e controle para todos os envolvidos na doação, além de fortalecer a coleta externa em condomínios, igrejas e empresas”, explica Cyntia Arrais. “Estamos enfrentando uma situação emergencial. Temos os pacientes padrão dos procedimentos, junto com a alta demanda de pacientes graves de covid-19 e a demanda reprimida de cirurgias eletivas e tratamentos de 2020 que retornaram em 2021”, alerta.
No caso da covid-19, as transfusões de sangue são para pacientes que apresentam anemias e distúrbios de coagulação, que podem ocasionar tromboses, inflamações e até lesões em órgãos. As transfusões amenizam esses quadros e podem reverter o comprometimento da saúde do paciente.
A expectativa da Fundação Pró-Sangue é que a longo prazo o período complexo de pandemia possa mudar o comportamento da população em relação à doação. A instituição tem planos de medir indicadores comparando o cenário antes e depois da pandemia, considerando que muitas pessoas doaram sangue por conta da covid-19 e tiveram esclarecimento sobre a importância do procedimento.
“O brasileiro é solidário. Quando um familiar ou amigo precisa, ele vem e doa. A questão é cultural. O que falta é o olhar de que doar sangue é um ato de cidadania e ter um relacionamento de regularidade. Incluir a doação na checklist do ano. Em países que passaram por situações epidêmicas, como MERS (Síndrome Respiratória do Oriente Médio), foram avaliadas mudanças e maior consciência do ato porque as pessoas tinham maior entendimento”, explica a hemoterapeuta.
Os tipos e o poder do sangue O
O sangue é estudado há séculos pela medicina, entre mitos e experiências. Desde a Grécia Antiga o tecido foi visto como uma possibilidade de cura de enfermidades, quando nobres chegavam a beber diretamente o sangue de gladiadores. A ideia de que a transfusão beneficiaria os seres humanos se firmou a partir do século 17 e foi utilizada em larga escala a partir da Primeira Guerra Mundial. Durante esses anos, quem tornou o procedimento viável e seguro foi o imunologista austríaco Karl Landsteiner a partir da descoberta do sistema ABO e do fator Rh, que são o positivo e negativo e definem a compatibilidade sanguínea de uma transfusão.
Landsteiner recebeu o Nobel de Medicina pelas suas descobertas de classificação do sangue, que conduziram a ciência a compreender fatores de incompatibilidade e desenvolver uma transfusão com maior segurança e benefícios. Também foi a partir de Landsteiner que se entende o poder do tipo O dentro dos bancos de sangue. “O tipo de sangue O é considerado universal porque ele pode ser recebido por qualquer tipo de paciente e é muito utilizado em emergências, quando um paciente sofre um acidente e precisa de uma atitude rápida. Ele é o que mais falta dentro do banco”, conta Cyntia Arrais.
Como doar sangue no Brasil
A transfusão de sangue é um procedimento criterioso e, para manter sua eficácia e segurança, inúmeros requisitos devem ser adotados pelos doadores. Todos eles são avaliados no momento da triagem. Entre as exigências estão: ter de 16 a 69 anos; pesar no mínimo 50 quilos estar descansado; estar alimentado, desde que evite alimentos gordurosos nas quatro horas que antecedem a doação; não ingerir bebidas alcoólicas por pelo menos 12 horas; e estar em um bom estado de saúde. Questões comportamentais também são consideradas na triagem para dar mais segurança ao procedimento.
Os principais impedimentos temporários são relacionados a viagens internacionais e para locais no Brasil com prevalência de malária, além de outras situações como diagnóstico de diferentes doenças, procedimentos estéticos ou de saúde, tatuagens, vida sexual e gestação. Vale ressaltar que em 2020 o STF retirou a norma de que “homens que tiveram relações sexuais com outros homens e/ou as parceiras sexuais destes nos 12 meses antecedentes" não poderiam doar sangue, sendo assim o público gay se tornou legível para a doação, rompendo com um preconceito vigente por décadas.
Para quem teve covid-19 e foi assintomático, é preciso aguardar 30 dias após a recuperação clínica completa para doar sangue. Em caso de suspeita ou contato com pessoa infectada, a recomendação é aguardar 14 dias antes de doar. Aos que já foram vacinados contra o coronavírus, a doação também segue um critério dependendo da vacina: 48 horas após cada dose (vacina Coronavac, da Sinovac/Butantan); sete dias após cada dose (vacina Oxford, da AstraZeneca/Fiocruz); e sete dias após cada dose (vacina da Pfizer/BioNtec).
Em São Paulo, para fazer uma doação basta acessar o agendamento online da Pró-Sangue e encontrar o hemocentro mais próximo. Em outras regiões, vale consultar a lista de hemocentros do Ministério da Saúde.