Super-heróis, super-atletas, superação, milagre. Essas são algumas das palavras geralmente associadas aos Jogos Paralímpicos e aos paratletas. Mais do que reconhecer a presença dos brasileiros nas modalidades e nos pódios, comentários na imprensa e nas redes sociais seguem destacando de forma errônea quem “superou a deficiência” e não um recorde de performance.
Essa visão demonstra o quanto a população no geral desconhece a realidade de aproximadamente 1,5 bilhão de pessoas no mundo que vivem com algum tipo de deficiência. Com a visibilidade esperada na televisão e nas redes sociais, os Jogos Paralímpicos de Tóquio 2020, que começam nesta terça-feira (24), podem gerar maior compreensão sobre acessibilidade e inclusão.
Além da torcida e a vitória sobre os adversários, o evento mundial é um momento de conscientização sobre a presença e inclusão da pessoa com deficiência (PCD) na prática de atividades físicas - seja da população geral ou de quem quer praticar um esporte de alto rendimento.
Para a médica do esporte Taline Costa, membro da delegação de natação do Brasil da Paralimpíada em Tóquio, o evento mundial pode inspirar as pessoas com deficiência a praticar esportes e a sociedade como um todo a ser mais inclusiva.
"Paralimpíada é uma competição para reconhecermos a performance e os recordes batidos. É preciso reconhecer, torcer e valorizar o trabalho do atleta e não a sua deficiência”, destaca Taline Costa, que é médica do Time de Saúde da Alice. “Deixar termos pejorativos como ‘super-heróis’ e nos provocar: o que estamos fazendo como sociedade para incluir pessoas com deficiências nas atividades físicas e nas práticas comuns da população geral?”, questiona.
O Brasil tem uma bagagem com mais de 300 medalhas nos Jogos Paralímpicos e quer aumentar esse número com a presença de 257 atletas, a segunda maior delegação brasileira já convocada para uma edição dos Jogos.
Sem acesso à atividade física
Em todo o mundo, estima-se que 15% da população viva com alguma forma de deficiência cognitiva ou adquirida, sejam elas físicas, mentais, intelectuais. Destas, 80% vivem em países de baixa ou média renda e enfrentam barreiras de inclusão para acessar a atividade física.
Uma avaliação publicada na revista The Lancet demonstra que pessoas que vivem com deficiência têm de 16 a 62% menos probabilidade de cumprir as diretrizes básicas de atividade física do que pessoas sem deficiência. Esse cenário colabora com maior risco de lesões e desenvolvimento de doenças crônicas.
“As pessoas com deficiência têm uma mudança de qualidade de vida substancial quando começam a fazer alguma atividade física. Não precisa ser necessariamente um esporte. Apenas o fato de manter uma rotina com o mínimo de atividade traz benefícios físicos, psicológicos e de socialização”, pontua a médica Taline Costa.
Na avaliação dela, a prática de alguma atividade também impulsiona a inclusão dentro da sociedade e reforça a necessidade de espaços e profissionais prontos para lidar cada vez mais com a acessibilidade.
A OMS publicou recentemente diretrizes de atividade física para PCD, afirmando que benefícios significativos podem ser alcançados com a atividade física, mesmo abaixo da recomendação de 150 minutos por semana.
Essas atividades podem ser incluídas na rotina diária seja no lazer, transporte, em casa, durante os estudos ou trabalho e em diferentes intensidades. O importante é que elas reduzam o tempo sedentário. Os pesquisadores enfatizam que a prática desse tipo de atividade não é prejudicial à saúde, independentemente da deficiência.
O objetivo das diretrizes é servir de parâmetro para a formulação de políticas públicas mais explícitas de como garantir os direitos de PCDs à participação plena e efetiva na atividade física.
A lacuna de dados
Ainda faltam evidências para entender a complexidade do acesso à atividade física por pessoas com deficiência no Brasil e mundo afora, inclusive para a Ciência. Entre 1999 e 2019, menos de 5% de todos os artigos publicados nas cinco revistas de maior impacto na literatura focaram seus estudos em pessoas com deficiência, e menos de 7% desses abordavam atividade física.
Além disso, pessoas com deficiências são excluídas de conjuntos de dados de nível populacional sobre atividade física, assim como em diferentes sistemas de vigilância de saúde, o que dificulta dados longitudinais para estimar os padrões de atividade física ao longo do tempo nesse grupo.
Os pesquisadores responsáveis pela publicação na Lancet apontam que é necessário aumentarmos os dados baseados em evidências científicas para ter intervenções sociais que efetivamente possam aumentar a quantidade e qualidade da participação de PCDs na atividade física.
Taline Costa também aponta o papel dos profissionais de linha de frente, que lidam com atividade física e esportes no Brasil, que vão além do esporte de alto rendimento.
“Os treinadores e profissionais que trabalham nessa área são essenciais para a inclusão. São eles que têm esse olhar especial, de identificar as barreiras e movê-las para garantir a inclusão. Isso impacta no espírito colaborativo dentro de uma equipe paralímpica e também na vida cotidiana. Não é apenas fazer uma atividade; é ter a oportunidade de participar”, concluiu.
WeThe15
A boa notícia é que a publicação da The Lancet também demonstrou que o esporte para pessoas com deficiência continua crescendo em todo o mundo e pode desempenhar um papel na promoção do empoderamento, inclusão social e participação social de PCD em todo o mundo.
A OMS (Organização Mundial da Saúde) busca nos Jogos Paralímpicos criar conscientização da importância da atividade física e da inclusão social para essa população. A entidade lançou a campanha WeThe15, uma coalizão de organizações internacionais do mundo do esporte, direitos humanos, política, comunicação, negócios, artes e entretenimento.
“Quando as modalidades paralímpicas são televisionadas, como nas Olimpíadas, é uma oportunidade de inspirar novas gerações para encontrar novas práticas esportivas e abandonar o comportamento sedentário”, esclarece a médica.
O objetivo da campanha é aumentar o conhecimento das barreiras e da discriminação que as pessoas com deficiência enfrentam diariamente em todos os níveis da sociedade e abrir o diálogo para criar novas oportunidades e diretrizes para a próxima década.