Você deveria parar de fumar. Quantas vezes um fumante não ouviu essa frase? À medida que o combate ao tabaco cresceu durante as últimas décadas, o cigarro foi desaparecendo das propagandas e perdendo espaço em ambientes fechados.
Mensagens chocantes nos produtos de nicotina se espalharam; o conhecimento dos malefícios do fumo e a relação com aproximadamente 50 enfermidades ficaram evidentes para a população. Mas a enfermidade por trás do tabagismo, não. A dependência da nicotina é considerada uma doença crônica, que requer um olhar clínico multidisciplinar.
Por esse motivo, a frase “você deveria parar de fumar” não é tão simples. Cada paciente responde de uma determinada forma ao uso da nicotina, substância presente em diferentes produtos à base de tabaco: cigarros, cigarros eletrônicos, charutos, narguilés etc.
A nicotina atinge o comportamento e o funcionamento do corpo humano de diferentes formas.
Em segundos após o trago, a substância age no sistema nervoso central, estimulando a liberação de neurotransmissores, que remetem à sensação de motivação, atenção, prazer, recompensa e à maior promoção de controle de estímulos e emoções negativas, além da redução de ansiedade e do apetite.
E, então, após o final da ação da substância no corpo, cerca de duas horas depois, vem a irritação, a ansiedade, o aumento do apetite.
O desconforto leva o usuário a fumar mais um cigarro, o corpo começa a criar tolerância, e o fumante eleva gradativamente os níveis de nicotina para manter o estado de bem-estar e diminuir esse incômodo.
A montanha-russa do tabaco
O grau de dependência é considerado de acordo com diferentes fatores, entretanto, independentemente do nível, o tabaco ameaça não apenas a saúde do fumante, mas também de amigos e familiares. Mais de 1 milhão de pessoas morrem todos os anos devido à exposição ao fumo passivo.
Para o fumante, descer dessa montanha-russa não é fácil. Cerca de 780 milhões de pessoas ao redor do mundo dizem querer parar de fumar, mas apenas 30% delas têm acesso a abordagens que possam ajudá-las a fazer isso.
Essas abordagens são inúmeras, de medicamentos até mesmo terapias alternativas. Todas são seguidas a partir do primeiro dia sem cigarro em um gesto de aceitar o desafio: lidar com as nuances de abstinência e recaídas, que são parte do processo e importantes para entender a relação de cada um com o ato de fumar.
Não existe maneira certa para parar de fumar. O que existe são protocolos com diferentes abordagens de acordo com o grau de dependência e a resposta de cada um.
Entender os gatilhos por meio do mindfulness
Apesar da eficácia de tratamentos farmacológicos e comportamentais, os fumantes tendem a ter recaída ao tentar parar de fumar. O papel das terapias alternativas no processo de abandono do cigarro vem sendo estudado há décadas como uma forma de lidar exatamente com as tentativas e as nuances que a ausência da nicotina traz ao usuário e os sentimentos consequentes de cada recaída, como culpa, frustração e vergonha.
O mindfulness permite prestar atenção ao momento presente intencionalmente e sem julgamentos, trazendo um sentimento de atenção plena. O treinamento aplicado em sessões de cerca de 15 a 20 minutos pode consequentemente mudar nosso olhar diante da rotina.
Cessação do fumo
A atenção plena, do ponto de vista da cessação do fumo, aborda como lidar com situações e outros sintomas da abstinência por meio do entendimento sobre regulação da atenção e emoção, consciência corporal, mudança na perspectiva de si próprio e sentimentos que produzem um maior controle dos impulsos.
Esse conhecimento também pode ajudar a reduzir o consumo de cigarros entre os fumantes que estão em fase de diminuição e ainda não pararam de fumar completamente, assim como auxilia na desconstrução de hábitos que podem alterar o comportamento.
Base científica do mindfulness
O mindfulness já é utilizado na área da saúde para promover benefícios em diferentes áreas como na diminuição dos sintomas de dores crônicas, ansiedade e depressão, por meio de uma meditação que foca a observação dos pensamentos e emoções - sempre com uma atitude de curiosidade e gentileza.
A ansiedade, por exemplo, faz parte de um dos sintomas da síndrome de abstinência à nicotina. Apesar de causar uma dor física e emocional, isso significa que o corpo está no seu caminho natural para voltar a funcionar normalmente.
Ela também pode ser causada por um gatilho comportamental. Ao longo da vida, o fumante vai estabelecendo associações e comportamentos relacionados ao cigarro. Lugares, bebidas, situações. Essas associações também podem desencadear crise de abstinência e eventualmente uma recaída.
Alan Marlatt, psicólogo e um dos vanguardistas nas pesquisas de comportamentos aditivos, apontou que o mindfulness tem o potencial de abordar o vício de uma forma acolhedora.
O usuário pode aceitar suas experiências anteriores, ter consciência de quais são os gatilhos, aprender a lidar com essas situações e sair de padrões habituais de pensamento, o que pode diminuir o número de recaídas.
O psicólogo desenvolveu o Mindfulness-based Relapse Prevention, que hoje é utilizado para diferentes tipos de dependência química.
A Unifesp (Universidade Federal de São Paulo) estudou a metodologia de atenção plena desenvolvida por Marlatt como estratégia adjunta ao tratamento da dependência de tabaco.
O estudo com pacientes do SUS (Sistema Único de Saúde) identificou que a abordagem tem potencial em diminuir as recaídas, reduzir a fissura, abstinência e desejo urgente e arrebatador de fumar. Com a prática de meditação, associada ao tratamento padrão disponível no SUS, a volta ao cigarro foi três vezes menor.
A percepção de si também mudou: de acordo com os relatos de grupos focais, os pacientes praticantes de mindfulness descreveram a surpresa de conseguirem meditar, situação que muitos consideraram inicialmente que seria impossível. Segundo os entrevistados, meditação seria algo que levariam consigo após a alta.
A abordagem da meditação é milenar, entretanto a ciência ainda estuda os benefícios da atenção plena. O Cochrane Tobacco Addiction Group está atuando, desde o ano passado, em uma revisão para definir a eficácia das intervenções de atenção plena para a cessação do tabagismo entre pessoas que fumam e os resultados para a saúde mental a partir das evidências na literatura.
Todo dia é dia de recomeçar
A literatura científica demonstra que em média um ex-fumante consegue parar definitivamente de fumar após, pelo menos, entre três e quatro tentativas. Há estudos que apontam relatos de até 20 tentativas.
Esse cenário não deve ser encarado com frustração ou como um fracasso. O Programa Contra o Tabagismo do Instituto Nacional do Câncer diz com todas as letras: dê-se várias chances até conseguir.
E se você é fã da ideia de que toda segunda-feira é dia de parar de fumar ou início do ano, a Associação Americana de Câncer recomenda um planejamento antes de decidir a data.
A recomendação é escolher uma data com um mês de antecedência para buscar informações sobre as alternativas para parar de fumar e consultar um profissional médico, além de contar aos familiares e amigos sobre a sua nova atitude e receber apoio e encorajamento.