“Quem conta um conto aumenta um ponto.” É capaz que você já tenha ouvido esse velho ditado por aí. Apesar de não sabermos exatamente a sua origem e autoria, ele traz algumas verdades. De acordo com a Ciência, existe um viés do nosso cérebro ao narrar algo que foi vivido no passado. A nossa memória é considerada um processo altamente reconstrutivo e, de acordo com os especialistas, o seu conteúdo pode mudar cada vez que revisitamos determinada experiência.
Mas o quanto as nossas memórias diferem das experiências originais? E como elas são transformadas ao longo do tempo? Até agora, inúmeros experimentos científicos tentaram medir essa transformação, mas um estudo recente das universidades de Glasgow, na Escócia, e Birmingham, na Inglaterra, mergulhou no tema para trazer algumas respostas.
Publicado na revista acadêmica Nature, o trabalho buscava medir aquilo que permanece de detalhes e informações específicas quando revisitamos algo do passado, e qual a diferença entre o que lembramos de informações e dados mais genéricos.
A partir de um experimento por meio da ativação da memória visual com um grupo de adultos, os pesquisadores concluíram que são os detalhes das nossas memórias que desaparecem, mesmo que a gente revisite e repita essas informações mais específicas. A nossa tendência, em geral, é guardar apenas o conceito e a essência do que foi vivido.
O estudo
Décadas de análises sobre o funcionamento da nossa memória já comprovaram o efeito protetor da repetição contra o esquecimento. Ao repetirmos continuamente uma lembrança, ela é processada pelo nosso cérebro como uma informação recém-adquirida.
O que os pesquisadores das universidades de Glasgow e Birmingham decidiram investigar é se todos os aspectos de uma memória seriam beneficiados igualmente a partir da recordação ativa. A pesquisa, então, tratou de analisar as mudanças qualitativas nas memórias que ocorrem com o passar do tempo, mesmo que exista a repetição da lembrança.
Para esse estudo, os pesquisadores desenvolveram uma atividade com ajuda de um computador que mede a velocidade com que as pessoas recordam determinadas características das memórias visuais. Os participantes foram expostos a tabelas com pares de imagens e palavras. Por exemplo, em uma tabela, estava a palavra “coração” e o desenho de um coelho. Algumas das ilustrações tinham cores, outras eram apenas cinza e branca.
Em seguida, os participantes foram solicitados a indicar, o mais rápido possível, se a imagem era colorida ou em tons de cinza (ou seja, eram testados se lembravam de um detalhe perceptivo), ou se o computador mostrava um objeto desenhado ou uma palavra escrita (ou seja, se os participantes seriam capazes de lembrar do elemento semântico). O teste foi realizado imediatamente após a exposição das tabelas e repetido 48 horas depois ao mesmo grupo.
Com base nos resultados, os pesquisadores entenderam que as características mais gerais das figuras são fixadas mesmo no decorrer do tempo, enquanto os detalhes mais específicos não são lembrados. No entanto, a lacuna dessas informações foi menor no grupo que foi exposto às tabelas das figuras diversas vezes, ou seja, o grupo em que houve repetição da memória.
Segundo o estudo, essa é mais uma evidência de como o nosso cérebro tem um viés em relação ao conteúdo da memória e tende a esquecer aquelas cenas muito ricas em detalhes para guardar apenas as memórias baseadas em conceitos mais essenciais.
De acordo com Maria Wimber, pesquisadora em neurociência e principal autora do estudo, o fato de as nossas memórias mudarem ao longo do tempo é algo positivo e faz parte da adaptação da nossa espécie, uma vez que queremos que o nosso cérebro retenha apenas aquilo que for útil no futuro.
Para Wimber, os resultados do trabalho podem trazer implicações em diversas áreas: desde a melhor compreensão de como lidar com as memórias em um evento de estresse e trauma, ou até mesmo em como o sistema judicial lida com o depoimento de testemunhas, ou, ainda, em como estudantes podem construir metodologias de aprendizagem e ensino, por exemplo.