A atleta americana Simone Biles contrariou as expectativas, patrocinadores e a própria comissão técnica para aceitar os seus limites em prol de sua saúde mental.
A ginasta abriu mão de disputar as finais em equipe e individual do esporte nas Olimpíadas de Tóquio e, assim, adiou a possibilidade de se tornar a atleta com mais vitórias em campeonatos mundiais e Jogos Olímpicos.
Depois da decisão, ocupou as arquibancadas, torceu por seu time e levou ao mundo um discurso inspirador e transparente. “Nós não somos apenas atletas; no fim do dia nós somos pessoas, e às vezes temos que dar um passo pra trás.”
O gesto da atleta a favor da saúde mental não é isolado, mas ataca um campo raramente explorado dentro do esporte, desde as categorias de base até os campeonatos mundiais.
“O atleta sempre foi visto como um super-humano e, portanto, levado a situações e condições extremas para ter um alto desempenho. Isso faz que com frequência potenciais atletas desistam de seus esportes por conta da saúde mental e da cobrança recorrente à performance”, aponta Leo Fukuda, preparador físico na Alice.
Outros esportistas levantaram essa bandeira nos últimos anos como Michael Phelps, Diego Hypólito e, recentemente, a tenista Naomi Osaka, primeira japonesa a conquistar um Grand Slam, quando o atleta ganha os quatro principais torneios de tênis.
Em junho deste ano, ela decidiu não participar das coletivas de imprensa da edição 2021 de Roland Garros para evitar estresse. A organização a multou, e Osaka decidiu abandonar a competição.
“O gesto de Biles, assim como de diferentes esportistas, incentiva a sociedade a entender que o atleta é um ser humano e tem limitações, cria um ambiente positivo e amplia a possibilidade de termos no futuro um maior número de atletas olímpicos”, aponta o preparador físico.
Saúde mental dos atletas é uma preocupação global
Medalhas, recordes, performance e evolução. Da superação ao fracasso no cotidiano, a vida de um atleta traz desafios desde o início suado até o complexo final da carreira. Chegar ao topo da sua modalidade pode deixar a marca na História, mas expõe também a vulnerabilidade do esportista na atual sociedade do desempenho.
Ditada não apenas pela avaliação de técnicos e juízes, mas também pelos torcedores, que usam e abusam das redes sociais com suas palavras de apoio, mas também mensagens de ódio.
A Ciência já demonstra que os índices de transtornos mentais dos atletas de elite são equivalentes ou superiores aos da população geral.
Uma meta-análise desenvolvida a partir da revisão de cinco bancos de dados e mais de 20 artigos científicos publicados até 2018 mostrou que há uma prevalência de sintomas e transtornos de saúde mental, sendo que 19% dos atletas podem apresentar uso indevido de álcool e 34% sintomas de ansiedade ou depressão.
Os eventos adversos da vida, lesões graves que levam a cirurgias e longos períodos de recuperação estão associados a sintomas de ansiedade, depressão ou ao uso indevido de substâncias como o álcool.
Outro fator estressor para a saúde mental de quem vive pelo esporte é a transição para fora da rotina do esporte de elite, como a aposentadoria, quando há uma ruptura de rotina e hábitos. A meta-análise apontou que os sintomas de ansiedade e pressão persistem entre 16% a 26% entre ex-atletas de elite.
Para Leo Fukuda, a boa performance de um esportista depende também do descanso e da pausa.
“Para que ocorra o desempenho, precisamos ter a possibilidade do descanso, do ócio e do manejo das pressões recorrentes.
Isso não torna ninguém com menos resiliência, pelo contrário, demonstra um equilíbrio essencial entre profissão e vida pessoal, que deve ser levado em consideração no preparo de um atleta de alto rendimento”, destaca o preparador físico.
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Impacto dentro dos Jogos Olímpicos
O reconhecimento de problemas de saúde mental entre atletas é recente para o COI (Comitê Olímpico Internacional). Em 2017, a organização reuniu especialistas para entender o que a literatura científica havia investigado sobre o tema.
Em 2019, publicou um artigo de consenso sobre como os transtornos de saúde mental podem afetar os atletas na British Journal of Sports Medicine.
O documento demonstra que pressão, tristeza, estresse, ansiedade e depressão estão entre os sintomas que influenciam em pelo menos 50% dos atletas entrevistados pelo COI. Esses sintomas de transtornos mentais podem prejudicar o desempenho e aumentar o risco de lesões físicas.
Como recomendação, o COI criou um questionário de rastreamento e prevenção de transtornos mentais com perguntas que podem ser feitas por membros da comitiva, técnicos, familiares e podem ser aplicadas inclusive de atleta para atleta.
Essa abordagem foi definida considerando que a rede de apoio do atleta é um importante instrumento para facilitar a detecção precoce e fomentar a busca de ajuda.
Cenário pandêmico pode agravar a situação
A pandemia de covid-19 provocou mudanças na maioria dos aspectos da vida dos atletas, incluindo novos desafios para lidar com a rotina modificada pelo isolamento social e a insegurança social diante do vírus.
Os departamentos de psiquiatria e de saúde pública da Universidade de Wisconsin estudam como a pandemia pode criar novas vulnerabilidades para a saúde mental dos atletas de elite.
Apesar de ser um momento cheio de incertezas e fragilidades para todo mundo, há uma oportunidade importante de entender sobre novos métodos de prestação de cuidados para o equilíbrio emocional dos atletas.
Segundo artigo publicado pelos pesquisadores, o foco geral do atendimento aos atletas neste período está concentrado nas complicações cardíacas, rastreamento de doenças assintomáticas e retorno ao esporte, incorporando os novos protocolos de higiene e de distanciamento social, decorrentes da pandemia.
Contudo, é possível fazer diferente. A psicoterapia, em seus diferentes modelos como aconselhamento, individual, de casal/família e de grupo, pode ser útil no acolhimento do esportista.
Sessões via telessaúde podem ser uma oportunidade de tratamento mesmo diante da agenda de viagens frequentes do atleta e podem trazer benefícios mesmo após o fim da pandemia.